sábado, junho 16, 2007

Parábola do Zé e do Lucas

O Zé era um dos jovens mais requisitados da aldeia. E mais bem vistos por toda a gente. O que não era, porventura, de admirar, já que descendia de uma das famílias mais importantes e mais poderosas da região.

Toda a sua vida tinha sido conduzida com a segurança de quem sabe que as coisas são o que são, e que o mundo apenas olha para o que se pode e tem. Mas também que nunca se deveria esquecer que os preceitos e as leis (sobretudo as que existiam para se perpetuar o poder instituído) eram para se cumprir à risca.

E o Zé lá foi crescendo, aprendendo a ser um exemplo para todos. Mesmo que, por vezes, na intimidade da sua casa, os exemplos se ficassem apenas e tão-somente por exemplos. Mas que cumpria todas as letras dos compêndios que estudava e seguia, lá isso não se podia negar. Era, na verdade, um exemplo a seguir, segundo o seu mestre-escola.

Em tardes amenas e alegres, também o Zé se juntava aos outros jovens, em brincadeiras animadas e ruidosas. Mas sempre sem deixar de assumir a sua pose de menino bem comportado.

Lá na aldeia, numa casa meio acabada e já bem velha que se escondia ao fundo do casario, vivia o Lucas, um jovem mirrado pela secura do tempo e da boca. E da vida, diziam alguns.

Fugia amiúde de casa, em função das tareias com que era mimado, sobretudo pelo pai. A mãe, vivendo antecipadamente o deserto de carinhos e afagos, nem o marido lhe servia já de consolo. Seca de receber, acabara igualmente seca de dar. Desconfiados de tudo e de todos, apenas sabiam transmitir ao filho, que se calhar nem quiseram, a desconfiança com que olhavam a vida à sua volta.

Um certo dia, o Lucas tinha sido apanhado a roubar uma maçã, da cesta que a D. Ana tinha na sua venda. Coisa vil, segundo os compêndios da casa do Zé. E era, bem vistas as coisas.

Ao fugir da dona da venda, o Lucas esgueirou-se por entre os canaviais que acompanhavam o pequeno ribeiro da aldeia. Ao tornear, no centro do canavial, um grupo de canas mais afoitas, uma bem aguçada foi espetar-se-lhe no olho direito, ali ficando vermelha de sangue. Cambaleante, dorido e cego, acabou por cair já fora do canavial, ali mesmo ao lado do caminho que acompanhava o ribeiro.

Zé foi dos primeiros a chegar, ainda ofegante e depois do alarido todo que se tinha ouvido aquando do roubo e da fuga.

Quando o quiseram levar à pressa a casa do Senhor Fernandes, o enfermeiro não encartado da aldeia, foi a voz do Zé que se fez ouvir, indignada e bem sonora:

- Alto lá! Daqui ninguém sai até que se chame a autoridade. Foi cometido um crime. É preciso que seja feita justiça.

E só se calou quando, passadas que foram mais de duas horas de muito choro e dor, já depois de ser lavrado o auto, pelo Guarda Simão, lá puderam levar o infeliz criminoso até à sala do esforçado enfermeiro. Acompanhado, é bem de ver, e como não podia deixar de ser, pela escolta da autoridade. Depois de o ver, de limpar a zona ferida e sem remédio, deixando cair os ombros com ar de resignada comiseração, disse:

- Nada mais posso fazer. Levem-no ao hospital, muito embora não acredite que não venha a ficar cego daquela vista. Se o tivessem trazido logo, ainda se podia ter salvo a visão. Agora…

À noite, quando chegou ao quarto para se deitar, como era habitual, o Zé ajoelhou aos pés da cama e elevou aos céus a sua oração:

- Graças Vos dou, Meu Deus, porque não sou como os outros: ladrões, miseráveis, pedintes, injustos e mentirosos; nem como o tipo que foi hoje preso por ter roubado a D. Ana.

E, nessa noite, adormeceu feliz e tranquilo.

2 comentários:

Carmo Rosa disse...

Já estranhava, arrependeu-se pensei!
Fabulosa a tua fábula - passo o pelonasmo.
Bem escrita, construída e uma óptima lição.

Um beijo

Zé Maria disse...

Arrependimentos, minha cara, apenas por às vezes não poder ou saber...
Para mais, quando a simpatia de quem cá aparece se manifesta, apenas podemos e devemos ir em frente.
Bjs